segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Um condenado à morte escapou – 1956 – Dir. Robert Bresson


Quando ouvimos termos como “ode à liberdade” vemos paisagens com elementos naturais, o céu, o mar, as montanhas, e sentimos, decerto, até a brisa do vento como fossemos pássaros cujo destino é onde a vontade e o desejo levem. Ou vemos pessoas, circulando por todos os lados, num fluxo contínuo na qual, nós mesmos, nos perdemos anonimamente. Observarmos, num e noutro caso, antes de tudo, o movimento, serenos ou rápidos, da vida. É aqula ausência de responsabilidades, sem amarras

No entanto, “Um condenado à morte escapou” de Robert Bresson, é diametralmente o oposto daquelas imagens. Também ode à liberdade, é realizada dentro de uma prisão nazista, onde os prisioneiros não podem conversar, sequer olhar para os companheiros, todos à espera de seu veredito, em regra, a morte. Tudo é árido, especialmente na cela onde o protagonista, André Devigni, passa a maior parte do filme, num regime de rigor extremado; há até mesmo escassez de diálogos, e quando, em dado momento, aparece um companheiro de cela, ficam a dúvida se não se trata de um nazista infiltrado. O titulo sugere tudo o que nos é mostrado numa história baseada em livro ( e também no passado real pois o próprio Bresson esteve preso por mais de um ano em razão da resistência ao nazismo).

Mas, à essa espera da morte e com várias idéias fatalistas cruzando no monólogo interior do personagem, Robert Bresson nos mostra que a luta pela vida se impõe. Apesar de ser um dos melhores dramas já mostrados, pode se assistir a esta película como uma aventura, não daquelas românticas, mas da aventura do real, do trabalho meticuloso da fuga numa situação extrema. O filme é essa construção e o que vemos são cenas de uma perfeição raras vezes vista.

Rigor e formalismo são a essência do cinema de Bresson que se expressam através de seu minimalismo, onde nada, nenhuma cena, sobra. O cinema, segundo Bresson, é um movimento interior e, deste modo, antes de minimalista, podemos afirmar que é essencialista, uma vez que trata dos valores fundamentais mas que só se revelam quando postos em cheque, quando nos vemos enclausurados por qualquer dessas estruturas do poder, seja ela qual for. Há, no processo meticuloso e planejamento e execução da fuga, mais que motivações idealistas: a busca da liberdade para Bresson é sobretudo espiritual ainda que, para atingi-la, se enfrente os riscos da morte e os muros de concreto. Filme francês essencial e ótima chance para resgatar esse grande cineasta que foi Robert Bresson.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

PAI E FILHA – 1949 – Dir.: Yasujiru Ozu


A tradição do cinema japonês é das mais ricas da filmografia mundial; apesar disso, Yasujiru Ozu é esquecido até em seu país, como mostrou Wim Wenders em seu documentário “Tokyo Ga” e, ainda hoje, é o cineasta dos menos conhecidos no ocidente mesmo em sua época (começou nos anos 1920 com o cinema silencioso e encerrou nos anos 1962, quando faleceu). Um dos motivos é de que os distribuidores achavam que suas realizações eram demasiadamente japonesas, com pouco apelo comercial para os olhos ocidentais pois nada mostrava das aventuras de samurais ou de lendas mágicas japonesas. Ao contrário, com raras variações, Ozu filmava dramas familiares e urbanos, num Japão em processo de ocidentalização e do choque de gerações. Redescoberto após a sua morte, inclusive no Brasil, pôde-se constatar a universalidade de seus filmes, expostas com uma simplicidade temática e estética e cujas nuances, complexas, a tornam de uma beleza incomparável, uma referencia para cineastas contemporâneos como o próprio Wim Wenders e o iraniano Abbas Kiarostami.

“Pai e Filha” é um filme exemplar na sua monotemática filmografia. Ozu, com seu peculiar método, a câmera baixa e estática, a lente de 50 mm que não distorce nem enfatiza as imagens, a posição frontal dos atores, extrai o mais profundo retrato das relações humanas, da família e dos vizinhos, o amor não revelado, os compromissos que não poderão ser firmados, onde as verdades tem menor importância que os sentimentos, mas estes brotam, contemplativos, nas imagens fixas, sem que Ozu manipule quaisquer recursos que induzam o espectador. Ozu trata da incompletude da vida com serenidade, a aceitação que alguns já entenderam como um olhar zen-budista. A história é de extrema simplicidade. Pai viúvo e escritor (Chishu Ryu) e filha (Setsuko Hara) vivem juntos e em paz. No entanto, os vizinhos do vilarejo acham um escândalo a filha, aos 27 anos, ainda não ter arrumado um noivo. O pai também passa a se preocupar com a situação e se vale de alguns artifícios para lhe arranjar um esposo, à revelia da filha pois, para esta, o pai não pode viver solitário uma vez que o julga dependente demais. São felizes juntos mas, a esta felicidade, se impõe os valores sociais incontornáveis, para os quais não existe outro caminho senão à submissão. Basicamente, o filme é isso, e Ozu filma o dia a dia, sem que qualquer fato extraordinário quebre a linearidade do cotidiano, ainda que seja o do não acontecer.


É no ordinário da vida, de todas as nossas vidas, o campo onde Ozu extrai toda a sua poesia, muitas vezes de uma contida tristeza. O não dito, ou melhor, aqueles sentimentos os quais sabemos que as palavras dos personagens não expressam, é o que importa para Ozu. Indizível que vem por imagens de rigor formal, câmera baixa e fixa à altura dos tatames japoneses, nos torna como contempladores daquelas personagens, mais que espectadores ávidos por desenlaces emocionantes. Não, antes de tudo, Ozu nos respeita, e filma o tempo exato da vida e da natureza humana. Recusa-se a jogar com nossas emoções.Os personagens se dirigem diretamente a nós, ou seja, à camera sem, porém, nos olhar. O final do filme, na foto acima, o velho pai, agora definitivamente solitário, tem de aprender a descascar uma maça, é daquelas cenas na qual a tristeza encontrou a sua mais poética tradução. A vida é assim mesmo e aceitemos como ela é, parece nos dizer. Ozu é o mestre sereno que respeitou a vida e a natureza das coisas, então dediquemos a ele não apenas o todo nosso respeito, mas também o todo o nosso amor à beleza de seu cinema único e universal.

domingo, 7 de junho de 2009

RASTROS DE ÓDIO – 1956 – DIR. JOHN FORD


De todos os herdeiros da linguagem clássica criada por Griffith - e todos, de uma época do cinema, o são - John Ford é, pela excelência, o mais legítimo, acrescentando àquela gramática pioneira, a poesia (a beleza como retrata o velho oeste) e a prosa (a dimensão humana das pessoas simples). Clássico dos clássicos, John Ford jamais se considerou um autor; ficou famoso a sua apresentação, quando dizia simplesmente: “Meu nome é John Ford e faço westerns”.

Filmando longe dos estúdios, tinha o seu porto seguro, onde os mitos, com suas verdades e mentiras, com os vivos e os mortos, lhe eram presentes, somados à amplidão das pradarias, respirando a aventura e a liberdade: o Monument Valley, seu céu azul radiante e suas imensas e avermelhadas rochas brotando do chão. Nesta paisagem, John Ford realizou o mais belo e amargo de todos os westerns, “Rastros de Ódio”.

O filme narra a saga de Ethan Edwards (John Wayne), personagem solitário e taciturno, que teve o que lhe restou da família (a de seu irmão) dizimada pela tribo do Chefe indígena Scar, em busca da única sobrevivente, Debbie (Natalie Wood), raptada pelos índios e, como se verá, incorporada à tribo. É uma busca movido pelo ódio e pela vingança, especialmente pela morte de seu disfarçado amor por Martha, esposa de seu irmão e mãe de Debbie. A jornada dura seis longos anos, nas quais John Ford nos mostra, não sem chocar, o ódio que Ethan nutre pelos índios. É uma das polemicas do filme, porém bem menor que a do racismo explicito de Griffith em “O Nascimento de Uma Nação” em 1919. Mas não se pode acusar John Ford de racista; anos depois, ele faz “Crepúsculo de uma Raça”, libelo em favor dos povos indígenas dizimados pelos conquistadores brancos. O que move Ethan é a sede de vingança junto da qual todos os sentimentos envolvidos à ela, inclusive esse ódio. Por outro lado, não há qualquer exaltação aos brancos e às suas conquistas como em Griffith, sem esquecer que o próprio Ethan é um derrotado sulista; não é de nenhum processo civilizatório que trata o filme, mas de uma extrema amargura de Ethan a quem apenas a vingança faz algum sentido.


Não obstante a tragédia de Ethan (a interpretação de John Wayne figurará em qualquer antologia de qualquer gênero), John Ford principia, em sua filmografia, uma revisão dos mitos do oeste, a ponto de, nos posteriores “O Homem que Matou o Facínora”, e no próprio “Crepúsculo de Uma Raça” refletir que muitas das lendas não passaram de...lendas, e de mentiras que derramaram muito sangue, de índios e brancos. Mas John Ford sempre foi contrario a filmes de tese. O grande poeta e prosador do oeste encerra um ciclo de sua carreira,e o faz utilizando-se dos planos do inicio e final de “Rastros de Ódio”, uma porta que emoldura a chegada e a partida de Ethan e sua solidão ao vento. Dizem que Jean Luc Godard ia às lagrimas todas as vezes que assistia ao ultimo encontro entre Ethan e Debbie; desconfio que o bravo irlandês John Ford, ao filmar a cena, deva ter se afastado um pouco da sua equipe e vislumbrar a beleza do Monument Valley para não mostrar os seus olhos marejados.

domingo, 10 de maio de 2009

A VIDA CONTINUA – 1991 – Dir. Abbas Kiarostami



O iraniano Abbas Kiarostami é o maior cineasta em atividade do mundo, mas qualquer de suas obras, numa primeira visão, pode, ao mesmo tempo, causar tanto o encantamento pela rara beleza como o tédio pela  lentidão e do não acontecer, tudo na mesma medida. É de paradoxos a filmografia de Kiarostami: sob a aparente e quase óbvia simplicidade, sem qualquer radicalismo visual, há um processo sofisticadíssimo de captação do real, do jogo na qual verdade e ficção se permeiam e se confundem. Além da excepcional beleza estética, sonora e narrativa de seus filmes que se harmonizam com a natureza, há dois aspectos de respeito ao humano fundamentais em Kiarostami: no modo de filmar os atores, quase na sua totalidade amadores, e sua relação com o próprio espectador, já não mais um sujeito passivo diante da imposição de um diretor do que assistir, mas como um verdadeiro participante na jornada proposta em cada um de seus filmes.

“A Vida Continua” ou “A Vida e Nada Mais”, os dois títulos vinham juntos quando exibido no Brasil, faz parte de certa e não declarada trilogia com “Através das Oliveiras” e “Onde fica a Casa de Meu Amigo”. É preciso contar um pouco destes filmes e relacioná-los para entender o método Kiarostami de trabalhar com o real. “Onde fica a Casa de Meu Amigo” é a única história independente que narra a saga de lealdade de dois garotos amigos na aldeia iraniana de Koker. “A Vida Continua” conta a história do diretor de “Onde fica a Casa de Meu Amigo” e seu filho em busca das crianças atores deste filme na aldeia de Koker, atingida pelo terremoto em 1990 e saber se estão vivas. E “Através das Oliveiras”, narra incidentes de um amor entre atores na filmagem de “A Vida Continua” na qual o diretor e seu filho são atores secundários. Neste jogo de entrelaçamentos, “A Vida Continua” é o filme do meio, mas com autonomia ficcional e narrativa.

A busca do diretor e de seu filho pelos atores mirins é feito com um velho automóvel percorrendo a árida paisagem devastada pelo terremoto no Irã. Tudo apontará para o trágico. Mas não trilha por esse caminho, certamente mais fácil, Kiarostami. Ele prefere a vida. A reconstrução dos seus moradores a partir dos escombros, com o barulho intermitente de caminhões, britadeiras, marretadas, todos os sons e imagens se dirigem para os elementos vitais, como se a vida fruísse involuntariamente aos sentimentos que poderíamos impingir pelas milhares de mortes que sabemos presentes.

Pois este elemento vital respira em todos os instantes nos caminhos percorridos pelo diretor e seu filho. As narrativas de tomadas longas, as vezes com a câmera mais distante, como as nos inserir nas paisagens, apresentam esse fluxo de vida, não com uma profusão de imagens, mas com o tempo preciso da apreciação, o tempo do convite a viver com aquelas pessoas, junto delas. Em muitos momentos, pelo fato de ter sido filmado em locações, com iluminação natural e atores amadores, parecerá um documentário, mas de um tipo diverso, na qual participamos num processo invisível de envolvimento com a situação que de fato ocorreu, o terremoto. Este realismo, ou a nossa própria percepção do real, se dá em outro nível, como se nós próprios percorrêssemos naquele tempo, os mesmos caminhos, ainda que nos detenhamos por esta ou aquela história, pessoa ou lugar em particular.

Os caminhos de Kiarostami são, ao mesmo tempo complexos e simples como os próprios caminhos de nossas vidas. Filmando as pessoas e suas vozes, já não mais o vemos como moradores de qualquer aldeia devastada por um terremoto e não sentimos mais qualquer diferença entre nós e os iranianos trabalhando para retomar suas vidas: somos todos de uma mesma comunidade universal em busca da felicidade que nos une.

A modernidade em Kiarostami não permite fechar o filme (a nossa vida é fechada?) mas em abri-la em varias possibilidades e a nos convidar a complementá-las. Esta é a chave do filme, a nos permitir, espectadores, a preencher lacunas, a sermos co-realizadores, numa generosidade praticamente inexistente em qualquer das artes. E, sobretudo, a não nos perecer pelas tragédias inerentes à vida. Em uma cena tocante e inusitada para nós, o filho do diretor pede a este para permanecer uma tarde num acampamento de refugiados pois irá passar na televisão o jogo Brasil e Escócia na Copa de 1990. É a vida e nada mais.

CABRA MARCADO PARA MORRER – 1981 – Dir. Eduardo Coutinho


Coube a um documentário, feito com escassos recursos (dinheiro saindo do próprio bolso e a ajuda de amigos e fieis colaboradores), atingir um dos maiores momentos do cinema brasileiro, tão grande quanto às obras de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla. Eduardo Coutinho, com raízes no Cinema Novo, já era reconhecido por seu trabalho no Globo Repórter, mas “Cabra Marcado” representou uma jornada pessoal, uma aventura a ligar dois elos de sua própria obra e também a dois momentos da história do Brasil. Trata-se de uma obra fundamental para entender o cinema e o país.

“Cabra Marcado Para Morrer” começou a ser rodado em 1964 e contava a história de João Pedro Teixeira, líder camponês da cidade de Sape na Paraíba, assassinado por latifundiários em 1962. Era o chamado “docudrama” , ou seja, a representação ficcional de um fato verídico, no caso, a história das ligas camponesas e sua organização para melhores condições de vida e de trabalho. Para a sua produção, financiado pelo CPC da UNE, Eduardo Coutinho contou com os próprios camponeses para representar a si mesmos, incluindo a esposa de João Pedro, Dona Elisabeth Teixeira e seus filhos. Ocorreu que, em meio às filmagens, no dia 1º de abril de 1964, veio o golpe, e os militares não só proibiram a produção como confiscou o material e equipamentos e prenderam camponeses e técnicos. Eduardo Coutinho conseguiu escapar e salvou o incompleto material filmado. Durante 17 longos anos, nas quais, como afirma em entrevistas, aquela incompletude atingia o âmago de seu ser como um espinho fincado, Coutinho foi preparando a retomada de “Cabra Marcado para Morrer”; quando finalmente reuniu recursos suficientes, percebeu que não fazia mais sentido realizá-la como uma ficção, e decidiu filmá-lo como um reencontro com aquelas pessoas, algo para o qual o documentário era a forma ideal.

As imagens que seguem são uma serie de entrevistas com os camponeses, narrações off do próprio Coutinho e de Ferreira Gullar a explicar, de um lado, o próprio processo daquele reencontro e de outro o contexto histórico do primeiro “Cabra Marcado”, imagens dos jornais da época, se tudo se intercalando. O próprio filme é apresentado aos moradores de Sape, representativa de tudo o quanto o filme propõe. Há ainda um processo investigativo para descobrir o paradeiro e o que ocorrera naquele hiato de 17 anos, principalmente da esposa de João Pedro, Elisabeth, e seus oito filhos.

Todo processo de “Cabra Marcado para Morrer” é de uma complexidade como poucas no cinema, aqui e de fora, uma vez que trata da memória de um dado momento histórico e a sua multiplicidade de visões a partir de seus protagonistas. Como afirmou o Professor Ismail Xavier, além do passado e do presente, existem um outro elemento que a completa: a do tempo contemporâneo, ou seja, de nós espectadores, o hoje; além disso, como cinema verdade idealizado pelo francês Jean Rouch, o próprio realizador é participante ativo de sua obra, com todas a implicações resultantes, como se não fosse, de fato, sua, mas de todos aqueles camponeses.

No entanto, há mais. Quando o assistimos, e o compreendemos didaticamente aquela complexidade, vemos, antes, o mais simples: as pessoas com seus rostos, suas vozes e suas histórias. Estão dignificadas na medida em que “Cabra Marcado para Morrer” liga finalmente o passado com o presente, principalmente na figura de Elisabeth Teixeira que, por inusitado que pareça, se tornou uma das maiores figuras femininas da história de nosso cinema. “Cabra Marcado para Morrer” , sem o querer, se tornou uma verdadeira obra prima na qual vemos, diante de nossos olhos, sua própria gênese. Para além da riqueza de significados, e são muitas, nos completamos com as imagens do povo, suas histórias e suas vidas.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

LUZES DA CIDADE – 1931 – Dir. Charles Chaplin


O legado de Charles Chaplin, nascido miserável e tendo, de fato, quase morrido de fome na sua infância em Londres, é dos maiores do cinema, e certamente o personagem Carlitos é daqueles na qual a humanidade, em todos os seus aspectos, o sublime em meio às adversidades inerentes à vida, é colocada da forma mais bela e profunda. Fazendo nos rir e chorar, sua arte não esta na genialidade em conduzir emoções, mas antes de nos aproximar de uma essência que teimamos em esquecer, de nos lembrar que somos livres.

“Luzes da Cidade” é uma história clássica em sua simplicidade e não a estarei estragando um centímetro em resumi-la: o vagabundo é confundido como um milionário por uma pobre florista cega que vive num cortiço com sua mãe e passa a ajudá-la sem revelar sua verdadeira identidade; acontece que um milionário, este verdadeiro, totalmente embriagado, é salvo de sua tentativa de suicídio pelo mesmo vagabundo e lhe fica eternamente grato passando a considerá-lo como seu melhor amigo; no entanto, apenas o reconhece quando está bêbado pois, sóbrio, esquece a amizade e a gratidão e sempre o expulsa de sua mansão, situação que se repete ao longo da película; em dado momento, o vagabundo lê uma noticia de um médico que pode curar a cegueira da florista e passa a trabalhar ardorosamente em vários atividades (lixeiro, boxeador) para obter dinheiro suficiente para a operação, mas tudo resulta em retumbante fracasso; um dia, quando encontra seu amigo milionário, este, bêbado, o chama a uma grande festa em sua casa e, compadecido com a luta inglória de seu amigo vagabundo pela sua amiga (sua amada?) decide ajudar com o dinheiro; acontece que ocorre um assalto na mansão e, após ficar sóbrio, o milionário acusa o vagabundo de tê-lo assaltado e este, após uma inútil tentativa de explicar, foge, entrega o dinheiro à florista e posteriormente é preso, passando anos na prisão.

Se quase tudo já foi dito do personagem de Carlitos, destaco um aspecto presente em “Luzes da Cidade” e em todos os seus filmes: a liberdade. Não por acaso Chaplin escolheu a figura do vagabundo como o personagem em quase todos os seus filmes. Que figura exemplificaria melhor o seu não estar preso a nada, a falta de lar, de emprego, de vínculos familiares, essa saudável irresponsabilidade? Porém não ser responsável não significa não se comprometer e, ao longo de vários filmes, pelo fato justamente de ser absolutamente livre, é que o vagabundo Carlitos pode verdadeiramente assumir compromissos , e sempre com uma pessoa em situação ainda menos afortunada que a sua. São, portanto, duas as forças que movem Carlitos: a luta pela sobrevivência e o amor ao outro.

Pois, se para Carlitos, que não se submete a qualquer categoria do sagrado (a religião, o capitalismo) nada mais lhe é tão precioso quanto a liberdade, o único motivo que o faz abrir mão dela é para ajudar o próximo e, para tanto, não mede esforços, se submetendo a todas as formas de exploração e injustiças, aceitando mesmo o trabalho e a prisão (quase como sinônimos). Não o faz diferente em “Luzes da Cidade” quando, no final do filme, o mais belo de todos, de volta à liberdade e à pobreza, Carlitos “vê” a realização de seu sacrifício no olhos da florista. As luzes do filme, iluminando nossa própria humanidade, também nos instiga: o que fazemos com a nossa liberdade? Carlitos, a quem a vida e o mundo o tornaram o mais amado dos vagabundos, nos convida a sermos mais livres e solidários, é só aceitar.

domingo, 26 de abril de 2009

SHINE A LIGHT – 2008 – Dir. Martin Scorsese


Não é o primeiro filme de Martin Scorsese de uma banda de rock. Em 1978 já havia realizado o notável “A Última Valsa”, o show de despedida do The Band que acompanhava Bob Dylan; Scorsese fez ainda recentemente um documentário do próprio Dylan e produziu outro em que homenageia o blues. Tampouco é a primeira incursão dos Stones no cinema. Tirando as participações de Mick Jagger e Keith Richards em alguns filmes, já foram filmados três documentários, todos de qualidade, por gente do calibre de Jean Luc Goddard (Sympathy for The Devil – 1968), os irmãos Maysles (Gimme Shelter-1970) e Hal Ashby (Let’s Spend Night Together – 1983). O que então faz este filme de diferente?

Sem comparar com os filmes protagonizados pelos Stones, o processo de filmagem é semelhante à “Última Valsa” na qual Scorsese procurou, na captura da imagens de um show, recursos de apuro cinematográfico onde a tecnologia e o abundante recurso da movimentação das varias câmeras, enquadramentos, cenografia e iluminação trouxessem ao máximo a sensação de estar dentro do palco, com o ponto de vista o mais privilegiado possível, não simplesmente o da platéia/espectador. Scorsese de fato cria essa proximidade absoluta com os Rolling Stones e realiza um processo na qual ele próprio não se ausenta; é participante ativo, apontando as sequencias que pretende filmar, a posição das câmeras, o teatro, a luzes, e até mesmo procurando saber do repertório para criar abordagens fílmicas de cada canção. É este processo da elaboração do show duplamente filmado, os Rolling Stones de um lado e Martin Scorsese de outro, a sua maior particularidade e que o distingue dos demais filmes dos Stones.

Além disso, pode-se dizer, Scorsese é fã dos Stones, não desses que fazem tietagem mitificadora, mas de quem conhece profundamente seus discos e sua importância cultural. Tanto que o repertório será inusitado a quem conhece apenas os sucessos dos Rolling Stones mas será um deleite aos fãs de longa data. É claro que não podiam ficar de fora “Jumpin' Jack Flash” que abre o show, “Tumbling Dice”, “Satisfaction”, “Sympathy For The Devil”, “Brown Sugar” e “Start Me Up”. Mas de resto, são contempladas canções que não figuram nos mega-shows que se acostumaram, preferindo o repertório da fase mais criativa do final dos anos 1960 e 1970, com curiosa ênfase nos discos “Exile in Main Street” de 1972 e “Some Girls” de 1978.
Há as participações previsíveis e dispensáveis: mais de Jack White (“Loving Cup”) e menos de Christina Aguilera (“Live With Me”). E como os Stones sempre costumam a homenagear os cantores de Blues, o filme traz o grande Buddy Guy em Champagne & Reefer. Mas são as apresentações dos Stones, eles próprios, com as novas rugas e a velha energia, a batida econômica e sóbria de Charlie Watts, os poderosos riffs de Keith Richards e o carisma do maior showman do rock Mick Jagger, aliados ao virtuosismo técnico de como Scorsese os retrata, ainda a alma do filme. Tem seus vários grandes momentos: a singela As Tears Go By (primeira canção composta por Jagger e Richards) que nunca fora cantada por Mick Jagger num show antes por eles terem vergonha!; “You Got The Silver” que era um folk, se tornou um blues arrastado e tenebroso na voz de Keith Richards; e a caipira “Faraway Eyes”, na melhor cena do filme, quando Mick e Keith, num dueto, juntam suas cabeças e se aproximam no mesmo microfone, esquecendo neste breve instante os milhões de dólares acumulados, a mesquinharia do poder, as rusgas e brigas do passado, cantando simplesmente como dois velhos amigos.

OS IRMÃOS CARA DE PAU – 1980 – Dir.: John Landis


Musical extemporâneo, “Os Irmãos Cara de Pau”, é uma comedia divertidíssima, feito com atores talentosos, um cast de músicos de primeiríssima grandeza e dirigido pelo esquecido e subestimado John Landis. É o que se costumava a chamar de cult movie ou daqueles filmes que, após sua exibição sem maior sucesso, torna-se o objeto de culto permanente por muito seguidores. Além disso, fez moda com o chapéu, os termos e os óculos pretos dos Blues Brothers (homenageado no filme “Homens de Preto”).

Para quem gosta de musica americana, ou melhor, da soul e do blues, “Os Irmãos Cara de Pau” é uma maravilha pois desfilam pela tela alguns dos mais legendários cantores da musica negra, e todos em cenas pra lá de engraçadas. James Brown faz o Reverendo Clophus James cantando um gospel (profano?) numa igreja. Ray Charles faz o dono de uma loja de armas! Aretha Franklin é uma garçonete mulher de um dos músicos. Num certo momento vemos John Lee Hooker a entoar seu blues no meio da rua. Em pontas, temos além do próprio John Landis, os diretores Steven Spielberg e Frank Oz. E temos, finalmente, os Blues Brothers, uma banda que surgiu no programa de televisão Saturday Night Live, acompanhado pelo grande crooner, então no ostracismo, Cab Calloway.

Já aos que gostam de cinema, temos, em primeiro lugar, o ator John Belushi. Grande comediante, teve infelizmente vida curta, morreu em 1982, mas é ele, junto com Dan Aykroyd, seu irmão no filme, quem conduzem a saga anárquica para arrumarem 5.000 dólares e salvar o orfanato onde foram criados. E temos ainda o diretor John Landis que consumiu 27 milhões de dólares para a realização desta enorme aventura. É daqueles filmes em que vemos cada centavo gasto, mas não com qualquer ostentação ou arrogância, muito pelo contrário; há um tal desapego, uma certa gratuidade nos exageros que nos apresenta e, por isso mesmo, nasce o seu encanto. Percebam as cenas quase surreais de perseguição; são centenas de carros destruídos e é exatamente pelos extremos de sua inverossimilhança onde reside a sua graça e o seu anti esquematismo. Fosse na mão de outro diretor, ainda mais nos atuais, possivelmente o faria com uma profusão de cortes frenéticos, mas o talento de John Landis prefere os enquadramentos de planos mais limpos em que as próprias seqüências naturais nos fazem rir. É uma comedia nonsense às antigas, sem a moderna escatologia.
O filme, o diretor e os Blues Brothers são ao mesmo tempo românticos, rebeldes, anárquicos, mas, sobretudo, tem a musica no sangue. Pela musica e a favor do orfanato, enfrentam toda a caretice das todas as instituições. Existe uma cena exemplar na qual os irmãos são perseguidos simultaneamente por músicos de country, pelos nazistas, pela policia e por uma amante. John Landis faz da paródia uma festa de homenagens aos filmes de perseguição, aos musicais, às comedias malucas e burlescas antigas e à nata da musica negra, tudo isso num mesmo e extraordinário filme.

terça-feira, 21 de abril de 2009

O ESCAFANDRO E A BORBOLETA – 2007 – Dir.: Janusz Kaminski


As primeiras impressões do filme são de rostos desfocados que, aos poucos, ganham contornos mais nítidos. As vozes confusas contam cientificamente o ocorrido. Percebemos então que nos encontramos num hospital e aqueles rostos e vozes são dos médicos e enfermeiras. Vemos e ouvimos as suas explicações e logo nos tocamos da gravidade de nossa situação. Nossa situação? Sim, porque a nós, espectadores, é que são dirigidas as palavras e os olhares: a câmera subjetiva nos insere na história. No entanto, uma voz off reponde e, deste momento em diante, percebemos se tratar de uma personagem do filme a quem transferimos a voz e que, posteriormente, ganha também um rosto. É a condição dramática deste personagem que acompanharemos neste filme.

“O Escafandro e a Borboleta” é a história verídica de Jean-Dominique Bauby, redator chefe da conceituada revista Elle francesa que, em 1996, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) mas com uma consequência mais séria e rara chamada locked-in que deixa a vitima intelectualmente lúcida mas totalmente paralisado. No caso de Bauby o único órgão que poderia movimentar era o olho esquerdo. E através de seu movimento e por um método que ele consegue se comunicar com as pessoas e, mais impressionante, conseguiu “ditar” um livro, justamente a base do filme.

É claro que se trata de um drama e, sem esquecermos que aquelas situações foram de fato vividas, é impossível deixar a compaixão de lado, e nos emocionaremos a cada cena em que Bauby vê as manifestações da vida, como as belas cenas de seus filhos brincando na praia.

Mas o filme não é uma auto ajuda no cinema. Não parece ser apenas uma opção do diretor Kaminski mas do próprio Bauby essa recusa de ser um relato da autocomiseração diante da tragédia e de sua superação. O filme é geralmente engraçado com as tiradas sacanas de Bauby narradas em off que diferem do que ele comunica com seu olho esquerdo. Ele ironiza constantemente os médicos. Faz observações sobre o seu estado sem complacência. Há excelentes músicas no filme. E, como Bauby ama, antes de tudo, as mulheres, elas são varias, e todas lindas (seu olhar, a única coisa que lhe resta, dirigem-se constantemente em pernas ou decotes). Os dramas dos personagens parecerem maiores que do próprio Bauby como da sua família, da amante, da fonoaudióloga, e de seu pai, interpretado pelo grande Max Von Sydow, ator predileto de Ingmar Bergman, numa atuação de uma comovente ternura.

O tema da sobrevida em situações extremas se, por um lado pode resultar em dramalhões óbvios e apelativos, por outro, pode render grandes filmes quando na direção de realizadores sensíveis e reflexivos como no caso de “Mar Adentro” e “Meu Pé Esquerdo” nas quais há a força da interpretação de Javier Barden e Daniel Day Lewis, e em “Johnny Vai à Guerra”, chocante drama de guerra, o manifesto anti-bélico de Dalton Trumbo. “O Escafandro e a Borboleta” guarda semelhanças com os filmes citados. Mas o que assistimos é que Bauby amou sua vida (morreu em 1997); a perda de todos os movimentos não lhe tirou o prazer de acompanhar todos os instantes e Bauby era, com toda a tragédia e os limites, um ser humano inteiro.

domingo, 19 de abril de 2009

CASABLANCA - 1942 – Dir.: Michael Curtiz


Engana-se quem imaginar que “Casablanca” seja um filme “B”. Na verdade, a Warner, produtora o filme, se notabilizou por fazer filmes policiais e dramas urbanos, com temática mais adulta. Filmes mais suntuosos ficavam por conta da Metro, da Paramount, da Columbia. Deste modo, “Casablanca” teve um tratamento comum mas típico às demais produções da Warner. Mas, certamente, jamais os produtores puderam calcular seu imenso sucesso e muito menos o culto ao filme que se seguiu pelas décadas seguintes.

O filme retrata, em plena Segunda Guerra Mundial, a caótica cidade marroquina de Casablanca, onde vivem exilados e cidadãos de toda Europa fugindo dos nazistas que, no entanto, dominam a cidade com o colaboracionismo francês; se reúnem no Rick’s American Café cujo dono, o misterioso Richard Blaine, pouco contato mantém com os freqüentadores. É a história de Rick que acompanhamos com a sucessão de fatos dentro de seu bar, principalmente depois da chegada à cidade do casal Victor Lazlo, herói da resistência, e sua bela esposa, Ilsa. Veremos se tratar, na realidade, de um reencontro entre Ilsa e Rick, que um flashback explicará. Embalado pela canção “As Time Goes By” cantada por Dooley Wilson, a seqüência na qual vemos o perfil iluminado de Ingrid Bergman e a aparição abrupta de Humphrey Bogart é daquelas inesquecíveis de todo o cinema. A partir deste reencontro surgem os dilemas de Rick, de Ilse e do próprio filme, entre a resistência ao nazismo e à entrega ao amor.

O sucesso de “Casablanca” é a combinação de várias fórmulas. Numa filmagem caótica, nem os atores, o diretor e os diversos roteiristas sabiam onde ia dar, cada qual tinha a sua interpretação da história, e a tensão entre os que queriam enfatizar o drama romântico e os que trabalhavam para impingir o contexto político resultam numa surpreendente unidade fílmica. Coube ao competente diretor da Warner, o húngaro Michael Curtiz (já havia realizado “Robin Hood” e “Anjos de Cara Suja” com grande sucesso), juntar aquela gama de roteiros (baseado numa peça de teatro) entregues à medida que as cenas eram filmadas. Assim, apenas na ultima seqüência os atores souberam do final.

Além de sequências antológicas, “Casablanca” tem um formidável grupo de atores. Humphrey Bogart, o mais moderno ator na era clássica de Hollywood, faz um Rick à sua imagem e, embora se possa supor que o tipo se sobrepunha ao ator, era extremamente talentoso, como demonstrou ao longo de sua filmografia. A sueca Ingrid Bergman, ainda novata nos EUA, se tornaria uma das maiores atrizes de sua geração, filmando com diretores como Alfred Hitchcock, Roberto Rosselini e Ingmar Bergman; interpreta uma dividida Ilsa e a sua beleza é um dos momentos altos de todo cinema. Embora num papel chave, Paul Henreid faz um apenas correto e convincente Victor Laszlo. Fazendo o mesquinho e desprezível Ugarte, está a pequena figura mas um ator de primeira grandeza, o húngaro Peter Lorre, imigrante da Alemanha onde atuou naquela que é das maiores interpretações masculinas em “M – O Vampiro de Dusseldorf” de Fritz Lang em 1931. Também da Alemanha veio Conrad Veidt interpretando o nazista Major Strasser; ironicamente, Veidt era um ferrenho opositor do nazismo e atuou no clássico do expressionismo alemão “O Gabinete do Doutor Caligari” de Robert Vienne em 1919. Melhor ainda a atuação de Claude Rains como o dúbio Capitão Renault; é tão cínico quanto Rick, mas mais mesquinho e oportunista, utilizando-se da diplomacia para os seus escusos interesses, mas nos reservará uma surpresa no final; ele é quem acompanha toda a transformação de Rick.

Ao heroísmo, em “Casablanca”, é imprescindível a abnegação e o risco. A construção do filme se baseia nesta premissa, na gradativa transformação que o reencontro com Ilse e o destino impõem ao desencantado Rick. Se no começo ele afirma que não arrisca seu pescoço por ninguém, é porque o amor e a própria história se encarregaram de lhe mostrar que o envolvimento, qualquer que seja, resultou, no seu caso, em fracasso. No entanto, nesse homem cínico subjaz um romântico incorrigível que nem a guerra e a desilusão amorosa enterraram, como observa o Capitão Renault. Há um duplo reencontro em Rick: o seu amor por Ilse e o ideal de um mundo livre, representado por Victor Lazlo e pelos exilados políticos que freqüentam seu bar. Em dado momento, à sua maneira, ajuda um casal tcheco a obter os passaportes para a fuga, sob olhares atônitos do Capitão Renault. Em outro, quando oficiais nazistas cantam temas alemães, Rick, assumindo as conseqüências, permite a Lazlo conduzir a Marselhesa, acompanhado pelos estrangeiros presentes no bar. E no final, quando as verdades emergem à cada um, a resistência heróica e a lembrança renascida do amor se fundem para não serem mais esquecidas, assim como jamais esqueceremos “Casablanca”.

sábado, 18 de abril de 2009

FALSA LOURA - 2008 – Dir.: Carlos Reichenbach




O filme começa com uma frase de Sócrates sobre a indissociabilidade do prazer e da dor. Corta para uma panorâmico pela Freguesia do Ó, periferia de São Paulo e, numa fusão das imagens, o mesmo movimento em travelling da câmera mostra duas belas mulheres, loura e morena, dançando sensualmente. Contrastes? Sim, mas como veremos, nesta bela sequência de abertura, neste mundo, tudo está “junto e misturado”.

“Falsa Loura” conta a história da bela Silmara (Rosanne Mulholland), garota de periferia, operária de fabrica, que sustenta seu pai, o ex-presidiário Antero (João Bourbonnais) e busca reaproximar com o filho caçula, o cabelereiro Tê (Léo Áquila). Silmara é brava e fútil. Suas amigas são Luiza (Vanessa Prieto), Briducha (Djin Sganzerla) e a professora Ligia (Maeve Jinkings) além de um relacionamento ambíguo com a professora de dança Regina (Luciana Brites); são as que dançam no começo do filme. Silmara se envolve com o cantor Bruno de André (Cauã Reymond) em busca da ascensão social. Somente Luiza, sua confidente, fica sabendo que Bruno a tratou como uma prostituta. Após alguns incidentes, entre as quais a desconfiança voltou ao mundo ao crime do pai, intermediada pelo advogado do pai, o Dr. Vargas (Bruno de André), é contratada para passar um final de semana como acompanhante do cantor da música romântica Luís Ronaldo (Maurício Mattar) e de seu filho Leonel (Emanuel Dórea).

Se existem varias formas de se apreciar este “Falsa Loura” é porque Carlos Reichenbach tem, dentro de si, várias referencias. Homem de cinema, sua forma de ver o mundo é essa mescla da arte refinada e das experiências vividas desde os tempos da boca-do-lixo. Tanto que, em vários de seus filmes, se nos apresenta a erudição (filosóficas, literárias, musicais) há também o popular da rotina da fabrica, dos bailes e seus ídolos, dos contornos dramáticos do cotidiano. É um filme da trabalhadora de periferia como o são “Anjos do Arrabalde” e “Garotas do ABC”, da qual há muitos pontos de contato.

Carlos Reichenbach afasta-se do naturalismo e não tem pudores de apresentar, no mesmo filme, um drama, números musicais; ele se recusa a qualquer visão sociológica, como quem observa de cima: ele se vê junto e ao lado dos personagens. Faz um cinema puro e não teses. Não glamouriza nem exalta as dificuldades da dureza. Por isso a insubmissa Silmara busca a ascensão social mas também vê a impossibilidade de realizar seus sonhos e, em meio a isso, a vida se lhe transcorre com uma sucessão de fatos.

Reichenbach faz um cinema de riscos, da aventura de criar, sem concessões tão somente comerciais e, justamente por isso, está sujeito à sorte e às imperfeições. Não é preciso ser um conhecedor para apreciar seus filmes; é necessário, antes, ser um apaixonado por cinema, tanto quanto ele; sem se preocupar se é um filme comercial ou de arte, sem se apegar exageradamente ao roteiro, sem sequer buscar lhe impingir qualquer gênero ou rótulo, assim podemos curtir prazerosamente a “Falsa Loura”. Além disso, ainda temos a linda e talentosa Rosanne Mulholland e, se torcemos para a infortunada Silmara, também desejamos que sua carreira seja tão promissora quanto o seu desempenho neste filme.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

UM CÃO ANDALUZ / A IDADE DO OURO – 1928 – Dir. Luis Buñuel


Se coloco os dois primeiros filmes de Luis Buñuel juntos é porque, além de inaugurar o surrealismo nas telas, a diferença está basicamente em suas durações (“Um Cão Andaluz” é um curta e “Idade do Ouro” um longa), foram realizadas no mesmo ano, tiveram ambos a colaboração do pintor Salvador Dali e o impacto foi e é o mesmo.

O surrealismo tem as suas raízes na psicanálise, um campo que, à época, pouco depois das fundamentais descobertas de Freud, foi profícuo não apenas no entendimento da “alma humana”, mas também a criação estética, à vazão artística do inconsciente, ao irrequieto Luis Buñuel.

Os dois filmes retratam a liberdade, mas não à tese da liberdade, à sua defesa ou justificativa, mas à liberdade como ausência do superego e das racionalizações, a liberdade pura da criação de imagens vindas diretamente de pulsões vitais do sexo, da morte, do desejo, da vida enfim. Buñuel e Dali filmaram seus sonhos conforme lhes vinham, cuja originalidade nasceu de não se imporem quaisquer medidas de censura; realizaram, assim, obras únicas no cinema: impossível destacar qual das imagens, ou de seu fluxo onírico, atemporais quando não subvertendo o tempo, em ambos os filmes, mais são as mais marcantes; cada um pode guardar a sua, ou várias delas, mas certamente muitas se fixarão em nossa retina (como a própria retina atravessada por uma navalha em “Um Cão Andaluz”).

Também pela liberdade são os ferozes ataques à burguesia e à igreja. Homem de esquerda, Buñuel se rebela contra as repressões institucionais que violentam o humano e, se suas imagens que ridicularizam os valores burgueses e clericais podem nos chocar numa primeira visão, também nos colocam frente com nossa própria liberdade como uma contraposição às verdades que nos são impositas. Na essência do humano há o sexo, como nos ensinou Wilhelm Reich, e reprimindo este instinto básico nunca atingiremos a plenitude da vida; nos conduzirá, ao contrario, aos regimes totalitários e a infelicidade geral, coisa bastante adequada à exploração do capitalismo e aos dogmas da igreja. A favor da liberdade, contra a hipocrisia, eis Luis Buñuel nestes dois filmes; além disso, os fez com muito humor.

A CANÇÃO DA ESTRADA – 1955 – Direção: Satyajit Ray


Satyajit Ray é dos maiores diretores do cinema, certamente o maior da Índia, e esta “Canção da Estrada” inaugura a chamada trilogia de Apu completadas com os filmes “O invencível” e “O Mundo de Apu”. Trata-se de uma jóia rara, tão extraordinária quanto os melhores filmes já realizados e, por motivos os quais jamais entenderemos, nunca foi exibido no Brasil, sendo lançado recentemente pela Silver Screen.

Não posso deixar de fazer menção ao ganhador do Oscar “Quem quer ser Milionário” feito pelo inglês Danny Boyle, filme que não assisti, e nem da atual moda da Índia instaurada com a novela da Globo, que também não assisto; logo, não escrevo com tanta propriedade; no entanto, interesses comerciais à parte, parece existir uma certa exploração tanto da miséria (no filme) quanto do exotismo (na novela) que, ao invés de aproximar para uma identidade entre seres humanos, realça os seus contrastes sociais e étnicos. Eis a oportunidade para assistir a dolorosa, poética e profundamente humana história do jovem Apu, acompanhando-o desde seu nascimento.

Neste primeiro filme, vemos sua família num vilarejo de Bengala com os pais, a avó (figura única no cinema) e a irmã. São extremamente pobres e as dificuldades o levam a mal ter o que comer e, diante dessas condições, anuncia-se a tragédia. Mas não é o retrato (ou a exploração) da miséria o que move o filme, nem mesmo a sua superação, mas é o mostrar a vida a fluir “apesar disso” ou “com isso”. Pois os olhos de Apu são puros, curiosos, plenos para o mundo, a pobreza sendo um de seus aspectos, não o único. No mesmo mundo de Apu, como de todos nós, existe a tragédia da morte, da doença e da miséria, mas também há o correr livre pelos campos, o se banhar nos rios, o ter o carinho dos pais, do conhecer as pessoas e lugares.

É um filme de descobertas, em mais de uma acepção, levantando o véu para a Índia e seus hábitos, embalado pela extraordinária e envolvente trilha sonora composta por Ravi Shankar.O tom quase documental do filme, apresentando o cotidiano da família de Apu, o vilarejo e suas pessoas, a Índia e suas paisagens em uma belíssima fotografia em preto e branco, confere a modernidade à obra de Satyajit Ray. Não o faz com crueza, como poderíamos inadvertidamente supor: o faz antes com tal delicadeza como a nos mostrar que na realidade, e apenas nela, os fatos tristes ou alegres seguem necessariamente juntos, nos mostra o que está no mundo com todos os seus encantos e vicissitudes.

Por mostrar pessoas simples e seus dramas, torna-os universais, como no neo-realismo dos italianos Rosselini, De Sica e Visconti, como no brasileiro “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos, como em toda obra do iraniano Abbas Kiarostami e do japonês Yasujiru Ozu. A esses nomes, que respeitam a vida, as pessoas e aos que amam o cinema, deve sempre se juntar o nome de Satyajit Ray.

GRAN TORINO – 2009 Direção: Clint Eastwood


Clint Eastwood é o legitimo herdeiro do cinema clássico, o melhor dos realizadores contemporâneos nos EUA e, prova disso, é este “Gran Torino”.

Neste filme, assistimos a um Clint auto referente, por vezes irônico, outras carinhoso, mas sempre reflexivo e crítico. Em vários momentos, lembraremos as cenas já vistas em outros filmes; mas Clint não se limita a inventariar a sua filmografia: ele a transforma em elementos estruturais, sempre em favor da narrativa. Não só: Clint observa a transformação da sociedade, não mais do ponto de vista do cavaleiro solitário do oeste nem o do sujo justiceiro das cidades, mas pelo olhar de um velho veterano da Guerra da Coréia, Walt Kowalski, recém viúvo, ex funcionário da Ford, “o” norte americano que, no entanto, é, agora, o “mais um” entre outros, mesmo dentro de seu país.Por isso o velho Walt rabugento e algo amargo, interpretado pelo próprio Clint, age e resmunga com a mesma irritação preconceituosa de uma senhora chinesa, sua vizinha, encontram-se no mesmo mundo, junto com negros, latinos, americanos, jovens e velhos, mulheres e homens.

E o mundo, no filme, é um bairro de subúrbio na outrora próspera Detroit, símbolo maior do poderio automobilístico estadudinense. Já não é mais: estão agora juntos noutra realidade, onde velhos solitários e famílias inteiras convivem com gangues diversas, sobrevivendo no que sobrou do sonho americano. Mesmo dentro das próprias colônias subjaz a tensão e a violência, como nos é mostrado a certa altura do filme. Não à toa, o que liga o velho Walt ao passado e, como se verá, à vida, é um antigo Gran Torino modelo 1972.

Mas é ainda um filme de Clint Eastwood e, por isso, não conseguimos desgrudar os olhos da tela; é engraçado e dramático nos momentos certos, desenvolvendo com equilíbrio o cotidiano deste subúrbio; rimos com as tiradas mau humoradas de Walt, nos chocamos com a violência praticada contra a jovem chinesa (a talentosa Ahney Her) e nos comovemos com gradual aceitação do velho Walt à familia chinesa, a este novo mundo e à sua propria humanidade. Clint, como ator, faz o melhor papel de sua longa carreira; ele afirma ser seu último. Acima ou ao lado deste “Gran Torino”, talvez apenas “Os Imperdoáveis”. Não é pouca coisa.

VICKY CRISTINA BARCELONA - 2008 Dir.:Woody Allen


O sexo sempre esteve presente na filmografia de Woody Allen mas não me lembro de nenhum outro filme, como esse, em que o desejo fosse o tema central. Pois “Vicky Cristina Barcelona” é bastante safado, mas leve e fluido, ainda que exista o seu momento de tensão dramática com a entrada, na metade do filme, de Penélope Cruz.

A atual fase da Woody Allen, filmando na Europa desde “Match Point”, tem em “Vicky Cristina Barcelona” uma nova mudança de rumo, não apenas na geografia. Não há aquela referencia ao cinema de Bergman nem especulações filosóficas. Saem os intelectuais de Nova York e entram jovens e curiosas turistas americanas seduzidas por artistas de sangue latino, quente e vermelho como a Espanha, cuja Barcelona é belamente fotografada.

O adultério entre adultos sofisticados e inseguros é outro tema recorrente em Woody Allen que ainda encontramos aqui, mas o desejo agora é epidérmico: da alma se deslocou para seu verdadeiro lugar, o corpo; mas, claro, é no cérebro o lugar dos problemas. O filme é construído em relações a dois que se mostram incompletas; as leis do desejo nascem sempre a três e há, com efeito, uma profusão de trios no filme: destes surgem a tensão e o tesão do filme.

Por falar em Bergman, a semelhança com os filmes do mestre sueco está na escolha de belas atrizes. Penélope Cruz, quando entra em cena, assusta e hipnotiza, ficamos realmente convencidos da paixão devota do personagem de Javier Barden; Scarlett Johansson, a atual musa de Woody Allen, continua irresistível e deliciosa, com uma dose extra de pimenta neste filme; Rebecca Hall é a personagem que mais se aproxima dos outros filmes de Woody Allen, a mulher meio adulta, meio insegura e meio careta que se vê, de repente, perdida com o calor catalão, aceitando, não sem medo, seus impulsos; e Javier Barden é, como sempre, um ótimo ator, mas desta vez numa moldura do amante intenso, o artista sensual cujo hedonismo é sua maneira de viver.

É um Woody Allen de bem com a vida, dos seus filmes mais gostosos de assistir e aponta, mesmo a essa altura da vida, sempre existirem maneiras de fazer filmes com novos temas, e com bastante prazer.

ABC DA GREVE - 1979/90 Dir: Leon Hirszman


No encontro do G-20 em Londres (abril de 2009), um fato foi tão noticiado quanto o aporte de um trilhão de dólares para o FMI na tentativa de salvar a economia do planeta: uma imagem captada pela BBC mostra Barack Obama entrando no centro de convenções, caminhando altivo e direto ao encontro de um pequeno grupo de pessoas; irreverente, estende a mão a um Lula quase surpreso e diz : “This is my man, right here, I love this guy", diante de atônitos chefes de estado. A imagem circula o mundo.

Trinta e um anos antes, quando Obana tinha dezessete anos, Leon Hirszman e sua equipe filmavam “Eles não usam black tie” quando eclodem as greves que paralisaram as maiores industrias automobilísticas do país instaladas no ABC paulista. Diante da mobilização de 150 mil trabalhadores com o torneiro mecânico Luis Inácio da Silva, o Lula, o presidente do sindicato dos metalúrgicos, à frente, e a ameaça de intervenção por parte do governo, o cineasta Leon Hirszman partiu com alguns membros da equipe para registrar os acontecimentos vivos em plena ditadura militar. É o retrato daquelas dias o tema do documentário de longa metragem “ABC da Greve” lançado numa excepcional caixa da VideoFilmes junto com “Eles não usam black tie” e outros curtas. A edição final do filme só foi concluída em 1990, após a morte de Leon Hirszman.

O cinema de Hirszman é didático: apresenta as mazelas dos trabalhadores, as desigualdades e as contradições sociais frutos da luta de classes; trata-se de uma obra de Hirszman exemplar dos duros anos de dualismo evidenciado, onde tomar partido, com as suas conseqüências, estava ligado à honestidade intelectual. Isso explica muitas das cenas onde são mostradas favelas ao lado das fábricas, a retórica vazia dos representantes das empresas e do governo, o retrato do inferno na fundição de aço; ao mesmo tempo, Hirszman dá voz e rosto aos trabalhadores, pessoas comuns, acompanhando-as às manifestações na fábrica, nas ruas e nas casas.

Há um momento em que Lula está no paço municipal de São Bernardo e milhares de trabalhadores aguardam a sua vez de falar. A tensão é tanta que os sindicalistas e o próprio Lula sequer notam a presença da equipe de filmagem. Seu semblante carregado demonstra a consciência dos riscos que palavras mal empregadas ou idéias desarticuladas podem causar à greve e ao destino daquelas pessoas. Com um cigarro na mão e a camisa cafona, Lula caminha em direção do povo; a câmera o acompanha e posiciona-se ao seu lado; quando começa a falar, total silencio, irrompidos com aplausos. Este “ABC da Greve” é um antecedente necessário para os documentários contemporâneos de Eduardo Coutinho – “Peões” - e de João Moreira Salles – “Entreatos”.

E O VENTO LEVOU – 1939 – Dir.: Victor Fleming


Aproveitando o relançamento das grandes produções de Hollywood na coleção de clássicos, irei postar, sempre que possível, comentários de alguns dos filmes que assisti, lembrando que trazem um livreto dos mais interessantes, a qualidade dos filmes é excelente e o preço dos mais acessíveis.

Embora o crédito da direção de “E o Ventou Levou” seja de Victor Fleming (de “O Mágico de Oz”), o filme teve outros diretores, sendo o mais famoso George Cukor, conhecido pelo talento na direção atrizes, perceptível no filme, além de Sam Wood e do diretor de fotografia Willian Cameron Menzies. Mas o grande responsável pela realização desse épico (das maiores bilheteria e produções de Hollywood) foi, sem dúvida, o produtor megalomaníaco David O. Selznick. A sua obsessão por filmar o romance de enorme sucesso popular escrito por Margareth Mitchell explica não apenas o sucesso extraordinário do filme, mas os mecanismos de funcionamento da própria industria dos sonhos que ainda é Hollywood.

“E o Ventou Levou” é um fenômeno extemporâneo, mas para a sua produção, Selznick não economizou esforços, poder e dinheiro, interferindo em todas as fases do filme, pois, coisa daqueles anos de Hollywood, havia a total submissão aos chefes de estúdio; todos os outros, astros e estrelas, diretores e demais técnicos, eram meros empregados, cada qual com seu papel bem definido e segmentado. A Hollywood daqueles tempos era a força dos grandes estúdios e de seus produtores e “E o Vento Levou” representou o auge do período clássico do cinema.

O filme é grandioso em todos os aspectos, a começar pela duração de mais de 3 horas. Havia já filmes de longuíssima duração, como “Intolerância” de Griffith com quase 4 horas ou “Ouro e Maldição” de Erich Von Stroheim, com inimagináveis 8 horas. Mas “E o Vento Levou” pretendia manter o espetacular por toda extensão do filme, desde suas primeiras sequencias na idílica fazenda Tara. Para cada plano, vemos na tela uma exuberância de recursos e todos os detalhes são minuciosamente trabalhados. Há a eloqüência da musica de Max Steiner, a cenografia suntuosa, figurinos exuberantes e uma intensa fotografia colorida que se altera na medida das emoções que as cenas se alternam.

Narra a saga de Scarlett O’Hara, menina rica e mimada a quem a vida, os homens e a Guerra Civil tornam uma das personagens femininas mais intensas de Hollywood. Com efeito, a interpretação de Vivien Leigh, mistura de mesquinhez e sedução, cuja evolução acompanhamos por quase todo o filme, é sua grande força motriz (a obsessão por sua amada Tara se confunde com o do próprio Selznick). O seu amor por Ashley Wilkes não convence muito (pode ser atribuído à interpretação meio desinteressada de Leslie Howard). Já Rhett Butler (o papel de Clark Gable foi uma imposição dos fãs), cínico e cosmopolita, apaixona-se por Scarlett exatamente pela chama inescrupulosa da vida; hoje percebemos que, se para o filme é perfeito, o seu tipo ficou tanto quanto datado. De se notar outro papel masculino, o do pai de Scarlett, Gerald O’Hara, dignamente interpretado por Thomas Mitchell, cujo pequeno tempo da tela mostram o grande ator que foi.

No entanto, os papeis mais interessantes do filme são das mulheres, e não apenas de Vivien Leigh. Olivia de Havilland que faz a frágil e pura Melanie Hamilton, foi tão extraordinária quanto Leigh, além de ter sido uma mulher politizada, das primeiras a lutar pelo direito das atrizes em Hollywood. Hattie McDaniel, a Mammy, empregada de Scarlett, a primeira atriz negra a ganhar o Oscar, tem seus momentos de humor mas, em pelo menos duas sequencias, apresenta todo seu talento dramático. Uma das melhores personagens aparece pouquíssimo no filme: a prostituta amiga de Rhett Butler, Belle Watling (Ona Munson), moderna e generosa.

O filme guarda enorme e não casuais semelhanças com o primeiro grande épico do cinema, “O Nascimento de uma Nação”, realização magistral e extremamente polemica de David W. Griffith, criador da linguagem clássica. Esse modo de fazer cinema, somada ao amadurecimento e consolidação da industria de Hollywood, se teve seu inicio em Griffith, teve seu apogeu neste “E o Vento Levou”.

O HOMEM QUE VIVOU SUCO - 1980 - Dir.João Batista de Andrade


Li numa revista que, quando chegou a São Paulo, o ator José Dumont, disposto a se aventurar pelo teatro, se viu desempregado e manteve duramente a esperança ouvindo “Here Comes The Sun” dos Beatles. No filme de João Batista de Andrade, acompanhamos a história do paraibano Dernivaldo José da Silva, poeta de cordel, rebelde e orgulhoso de sua condição, insubmisso extremado, buscando aquele mesmo lugar ao sol de José Dumont, almejando o respeito em meio ao preconceito de paulistas capitalistas a um retirante nordestino.

O filme, no entanto, é bem mais. Começa não com Dernivaldo José da Silva mas com Severino José da Silva, outro imigrante cearense que, numa entrega de premio tipo “Operário Padrão” (famoso naqueles anos de chumbo), após receber tal condecoração, saca de um facão e golpeia o presidente gringo da empresa. Seu rosto aparece em jornais e se torna um assunto na cidade. Corta para Dernivaldo, recitando seus cordéis no meio de um aglomerado de pessoas em qualquer rua do centro de São Paulo, até que chega um fiscal da prefeitura e, autoritário, expulsa Dernivaldo de seu ponto. Acontece que as pessoas passam a confundir Dernivaldo com Severino (ambos vividos por José Dumont) e, o que era difícil para Dernivaldo, conseguir emprego, se torna uma desconfiança das pessoas conhecidas ou não. Existe ecos de Hitchcock na trama, mas a forma é bem mais livre e moderna, não primitiva.

Um grupo de hippies aburguesados dançando ao som de “Let´s Spend the night together” dos Stones demonstra de que lado está João Batista de Andrade; corajoso, assume a ideologia sem torná-lo um entrave na realização de um cinema direto, sem frescura. E José Dumont revelou-se um dos grandes atores de sua geração.

FALE COM ELA - 2002 Dir.: Pedro Almodóvar


“Fale com Ela” é um pedido que faz Benigno, o enfermeiro, à Marco, o jornalista, procurando romper-lhe o ceticismo e conversar com a toureira Lydia, sua mulher. Um pedido, não uma ordem. Ambos se vêem numa inusitada e trágica situação, que os une: Benigno cuida de Alicia, a bailarina e Marco faz visitas regulares à Lydia; as duas vivem em coma, inconscientes, após traumáticos acidentes. Precisos flashbacks explicam o que aconteceu às duas belas mulheres.

Como se constrói uma tragédia? Eis a pergunta que se faz todo cineasta quando realiza um melodrama. Pedro Almodóvar, em “Fale com ela”, o coloca logo no começo, como pressuposto. A tragédia, no caso, não como qualquer tipo de redenção, mas como a possibilidade do encontro. Veja o caso de Benigno e Alicia, sem entregar o filme, um acidente trouxe-lhes, de certa forma, não apenas o amor, mas também, por caminhos transversais, incluindo o estupro, o milagre. Outro encontro é a amizade, desconfiança no começo, entre Benigno e Marco.

Diferente de outros filmes de Almodóvar, neste os personagens principais são homens e a partir do relacionamento entre eles é que são apresentados as pequenas, delicadas e ágeis historietas que os conduziram a estarem ali, ambos, no hospital, com suas amadas e com a memória do amor. Este filme continua colorido como todos os outros anteriores de Almodóvar, mas além dos vermelhos e amarelos, os dramas ganham o azul. É a história da amizade entre dois homens. Aos encontros e desencontros do amor, Almodóvar não apenas moderniza o melodrama, como o faz com grande sinceridade. Gênero muitas vezes desprezado, tido como menor, necessita de autores de sensibilidade e enorme talento para realizar obras que explorem esse aspecto da alma humana, a entrega ao terreno e à paixão. Não é fácil retratar a tragédia e o melodrama se equilibre entre dois abismos: o naturalismo frio e racional de um lado e a manipulação arbitraria das emoções de outro.

Pois Pedro Almodóvar não só o faz com honestidade e coragem como realizou um dos melhores do gênero, digno de Vincent Minelli, Douglas Sirk e Fassbinder. A nós brasileiros, existe uma dose extra de interesse: as musicas de Elis Regina e uma pequena e tocante aparição de Caetano Veloso, lindas e tristes canções, nada mais adequado a esse belo e, porque não, sublime “Fale com Ela”.