quarta-feira, 20 de junho de 2012


Diários de Motocicleta – Dir. Walter Salles

É a história da iniciação de um mito, mas Walter Salles preferiu um registro menor, da descoberta da America Latina pelo olhos do jovem Ernesto Guevara, junto com seu amigo, numa versão de Dom Quixote cujo Rucinante é um dos personagens, ao menos na primeira metade do filme, e que dá nome ao filme, a motocicleta cambaleante La Poderosa II, uma Norton 500 CC.

Para Walter Salles a estrada é um campo de descobertas, ou seja, de descobrir uma essência através da aventura, seja pelo impulso da juventude como neste Diários, ou seja pelo acaso em, por exemplo, Central do Brasil, seu outro filme.

É a jornada do herói que, no caso do filme e na vida, não o será sem dificuldades e riscos. Ao contrário, o jovem Ernesto é asmático, e todas as cenas das crises são angustiantes. Mas o que o empurra pra frente? 

Há atualidades neste belo filme de Walter Salles como os mineiros chilenos, sendo explorados nas minas de cobre (cujo soterramento, e espetacular resgate televisivo nos aponta que a exploração continua) ou chocante corte de Machu Pichu para Lima do Peru para a cidade de Cuzco.

Sensíveis interpretações, assim como a fotografia suave, toda construção se dá através do mergulho e das paisagens aos olhos do jovem Che.  

O que Che Guevara representa ainda, neste mundo anódino, capitalista e impessoal? Onde fica a aventura, as descobertas, a indignação e a busca daqueles que estão “do outro lado do rio”? Não sei, mas desconfio que enquanto as pessoas se sentirem tocadas e tenham o impulso de também embarcar nesta viagem, ainda haverá o desejo e o chamado para a aventura, com ternura e paixão, e que não morreu na selva da Bolívia, como o que aconteceu com Che, e nunca morrerá enquanto ainda houver injustiças, preconceitos e exclusão neste mundo. 

domingo, 10 de abril de 2011

CHÁ E SIMPATIA – 1956 – Dir: Vincent Minelli



Foi possível, graças à internet, rever esse belíssimo filme de Vincent Minelli, após quase trinta anos desde a primeira e única vez que o assisti, e cuja referência, pelo menos a que conhecia, era um texto do Glauber Rocha no seu livro “Século do Cinema”, relançado pela Cosac Naify. Ficou sempre, em minha memória, e plenamente confirmado, como um dos melhores melodramas, abordando um tema ainda hoje encarado com certo tabu no cinema: a masculinidade, no caso, aquela dos estadudinenses nos anos 50, a brutalidade dos vencedores, para os quais, qualquer manifestação de sensibilidade era intolerável, em especial entre os estudantes das universidades.

Trata-se de um flash-back do jovem estudante e aspirante a escritor Tom Lee (John Kerr) de quando instalado numa pensão do casal sem filhos, Laura (Deborah Kerr) e Bill (Leif Erickson). Ela, dona de casa, cuidando das flores do jardim; ele um professor de educação física, exaltando a força e o comportamento competitivo dos alunos. Tom Lee prefere a musica e a poesia e tem uma relação próxima a Laura, única que o compreende. Porém, Tom Lee é alvo de zombaria dos colegas e, já naquela época, vitima de bullyng e compelido, por todos, inclusive por seu pai e por Bill, às formas machistas de iniciação para afastar as duvidas de sua sexualidade.

O filme evolui no sofrimento contidos em gestos e olhares de Laura e Tom Lee, ela buscando protegê-lo, ele alimentando uma paixão platônica. A direção segura de Vincent Minelli, a beleza da fotografia e da musica não obscurecem a coragem de levar ao cinema a peça teatral de Robert Anderson. Filme sobre a ternura e a compreensão face à intolerância, apresenta-se de uma triste atualidade nestes tempos de bullyng nas escolas, racismo, homofobia, de feroz competitividade onde a manifestação dos sentimentos são tidos como ineficiência, onde a própria razão se mercantilizou.

Momentos únicos no filme e na vida, as cenas de Laura e Tom Lee, da aproximação, do carinho e, finalmente, do beijo, são a resposta das sensibilidade às repressões e violências da sociedade. Deborah Kerr nunca esteve tão linda; seu beijo resgata-nos a humanidade, seu beijo é encontro nunca mais esquecido, seu beijo nos desperta para o que somos.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Let it be – 1970 – Dir. Michael Lindsay-Hoog




Escrevo ainda sob o impacto do show do Paul McCartney há uma semana, resistindo à tentação de descrever as várias maravilhas que embalaram uma noite inesquecível. Mas como este espaço é dedicada a cinema e filmes, uma pequena e paradoxal homenagem é comentar o documentário Let It Be, lançado há exatos 40 anos. Paradoxal pois trata-se do registro da dissolução, ou o começo dela, da maior banda de todos os tempos e todo clima de tensão está lá, as claras, sem disfarces, o que dará sempre, a todos que amam os Beatles, uma sensação de tristeza e melancolia ao assistir o filme.



Os Beatles se notabilizaram, entre tantas outras qualidades (fora a música, claro), pela alegria da vida, pelo humor nonsense, pela aventura da experimentação, e este imaginário popular muito se deveu aos filmes “A Hard Days Night”, “Help”, “Magical Mistery Tour” e “Yellow Submarine”. Não obstante terem composto algumas das musicas mais tristes como “Eleanor Rigby”, “Long Long Long”, “She Leaving Home”, e outras certamente tensas como “Yer Blues”, “Helter Skelter”, a imagem dos Beatles eram luminosas como encontrar amigos que te entendem e te levantam o astral.



A idéia do filme foi de Paul, assumidamente o líder da banda na época, e consistia em filmar tudo e da maneira mais honesta possível o cotidiano da banda durante os preparativos de um show. O nome original era “Get Back” e representaria, para Paul, uma volta às origens, sem efeitos nem grandes produções, um som mais próximo ao inicio da carreira.



E assim iniciaram as filmagens. Mas desabaram todos os problemas em razão do desinteresse de John Lennon e George Harrison que já não suportavam as pressões e nem a liderança otimista e negligente de Paul. John estava apaixonado por Yoko Ono e não desgrudava dela; no filme é quase como se fossem um só. George é quase sempre irritação e, noutras vezes, apático; uma das cenas mais famosas é sua discussão com Paul. Quanto a Ringo Starr, embora sempre tenha sido a figura do amigo de todos, agregador, a frustração geral também o abate.



Tudo está lá, em 90 minutos. É um registro, e nisso reside a sua ousadia. Não ousadia formal, pois o diretor Michael Lindsay-Hoog segue basicamente os padrões estabelecidos pelo que se convencionou a chamar de cinema verdade na Europa ou cinema direto no Estados Unidos. Mas, ao capturar o real, sem subterfugios, sem filtros que não fossem a edição de 28 horas de filmagem, Let it Be não registra o “ser”, pois certamente, como já disse acima, e para todos os que conhecem, o fenômeno Beatles “é” muito mais; registra antes o “tempo”, ou seja, trata-se de recorte de um momento de uma banda que, saberemos depois, durará apenas alguns meses e mais um disco. Triste, tenso e melancolico, é sobretudo humano, assim como todos brigamos, desanimamos, queremos mudar de vida e de trabalho, mesmo que este trabalho seja nos Beatles. Pois Let it Be é honesto na medida em que mostra John, Paul, George e Ringo como individuos em busca do caminho para suas vidas, tendo de enfrentar toda situação que os desagrada a ponto de não conseguirem se comunicar.



Mas há a musica, e é dos Beatles! E mesmo uma pessoa com o coração de pedra se encantará, quando não se comover, com os quatro rapazes, ainda jovens mas envelhecidos pelo fastio do sucesso, quando estes compoem, ensaiam e tocam suas melodias. Ai temos a lenta progressão até chegar, John e Paul cantando juntos a "Two of Us"; o raro blues de George Harrison em "For You Blue"; John e Yoko dançando ao som da inusitada e bem humorada"Besame Mucho"; o fantástico show no telhado dos estudios de Abbey Road com "I've Got a Feeling" "Get Back" e "Don't Let Me Down"; e as lindas e singelas "The Long and Winding Road" e "Let It Be", num registro sem os efeitos, talvez as musicas que melhor capturaram aquele momento.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Um condenado à morte escapou – 1956 – Dir. Robert Bresson


Quando ouvimos termos como “ode à liberdade” vemos paisagens com elementos naturais, o céu, o mar, as montanhas, e sentimos, decerto, até a brisa do vento como fossemos pássaros cujo destino é onde a vontade e o desejo levem. Ou vemos pessoas, circulando por todos os lados, num fluxo contínuo na qual, nós mesmos, nos perdemos anonimamente. Observarmos, num e noutro caso, antes de tudo, o movimento, serenos ou rápidos, da vida. É aqula ausência de responsabilidades, sem amarras

No entanto, “Um condenado à morte escapou” de Robert Bresson, é diametralmente o oposto daquelas imagens. Também ode à liberdade, é realizada dentro de uma prisão nazista, onde os prisioneiros não podem conversar, sequer olhar para os companheiros, todos à espera de seu veredito, em regra, a morte. Tudo é árido, especialmente na cela onde o protagonista, André Devigni, passa a maior parte do filme, num regime de rigor extremado; há até mesmo escassez de diálogos, e quando, em dado momento, aparece um companheiro de cela, ficam a dúvida se não se trata de um nazista infiltrado. O titulo sugere tudo o que nos é mostrado numa história baseada em livro ( e também no passado real pois o próprio Bresson esteve preso por mais de um ano em razão da resistência ao nazismo).

Mas, à essa espera da morte e com várias idéias fatalistas cruzando no monólogo interior do personagem, Robert Bresson nos mostra que a luta pela vida se impõe. Apesar de ser um dos melhores dramas já mostrados, pode se assistir a esta película como uma aventura, não daquelas românticas, mas da aventura do real, do trabalho meticuloso da fuga numa situação extrema. O filme é essa construção e o que vemos são cenas de uma perfeição raras vezes vista.

Rigor e formalismo são a essência do cinema de Bresson que se expressam através de seu minimalismo, onde nada, nenhuma cena, sobra. O cinema, segundo Bresson, é um movimento interior e, deste modo, antes de minimalista, podemos afirmar que é essencialista, uma vez que trata dos valores fundamentais mas que só se revelam quando postos em cheque, quando nos vemos enclausurados por qualquer dessas estruturas do poder, seja ela qual for. Há, no processo meticuloso e planejamento e execução da fuga, mais que motivações idealistas: a busca da liberdade para Bresson é sobretudo espiritual ainda que, para atingi-la, se enfrente os riscos da morte e os muros de concreto. Filme francês essencial e ótima chance para resgatar esse grande cineasta que foi Robert Bresson.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

PAI E FILHA – 1949 – Dir.: Yasujiru Ozu


A tradição do cinema japonês é das mais ricas da filmografia mundial; apesar disso, Yasujiru Ozu é esquecido até em seu país, como mostrou Wim Wenders em seu documentário “Tokyo Ga” e, ainda hoje, é o cineasta dos menos conhecidos no ocidente mesmo em sua época (começou nos anos 1920 com o cinema silencioso e encerrou nos anos 1962, quando faleceu). Um dos motivos é de que os distribuidores achavam que suas realizações eram demasiadamente japonesas, com pouco apelo comercial para os olhos ocidentais pois nada mostrava das aventuras de samurais ou de lendas mágicas japonesas. Ao contrário, com raras variações, Ozu filmava dramas familiares e urbanos, num Japão em processo de ocidentalização e do choque de gerações. Redescoberto após a sua morte, inclusive no Brasil, pôde-se constatar a universalidade de seus filmes, expostas com uma simplicidade temática e estética e cujas nuances, complexas, a tornam de uma beleza incomparável, uma referencia para cineastas contemporâneos como o próprio Wim Wenders e o iraniano Abbas Kiarostami.

“Pai e Filha” é um filme exemplar na sua monotemática filmografia. Ozu, com seu peculiar método, a câmera baixa e estática, a lente de 50 mm que não distorce nem enfatiza as imagens, a posição frontal dos atores, extrai o mais profundo retrato das relações humanas, da família e dos vizinhos, o amor não revelado, os compromissos que não poderão ser firmados, onde as verdades tem menor importância que os sentimentos, mas estes brotam, contemplativos, nas imagens fixas, sem que Ozu manipule quaisquer recursos que induzam o espectador. Ozu trata da incompletude da vida com serenidade, a aceitação que alguns já entenderam como um olhar zen-budista. A história é de extrema simplicidade. Pai viúvo e escritor (Chishu Ryu) e filha (Setsuko Hara) vivem juntos e em paz. No entanto, os vizinhos do vilarejo acham um escândalo a filha, aos 27 anos, ainda não ter arrumado um noivo. O pai também passa a se preocupar com a situação e se vale de alguns artifícios para lhe arranjar um esposo, à revelia da filha pois, para esta, o pai não pode viver solitário uma vez que o julga dependente demais. São felizes juntos mas, a esta felicidade, se impõe os valores sociais incontornáveis, para os quais não existe outro caminho senão à submissão. Basicamente, o filme é isso, e Ozu filma o dia a dia, sem que qualquer fato extraordinário quebre a linearidade do cotidiano, ainda que seja o do não acontecer.


É no ordinário da vida, de todas as nossas vidas, o campo onde Ozu extrai toda a sua poesia, muitas vezes de uma contida tristeza. O não dito, ou melhor, aqueles sentimentos os quais sabemos que as palavras dos personagens não expressam, é o que importa para Ozu. Indizível que vem por imagens de rigor formal, câmera baixa e fixa à altura dos tatames japoneses, nos torna como contempladores daquelas personagens, mais que espectadores ávidos por desenlaces emocionantes. Não, antes de tudo, Ozu nos respeita, e filma o tempo exato da vida e da natureza humana. Recusa-se a jogar com nossas emoções.Os personagens se dirigem diretamente a nós, ou seja, à camera sem, porém, nos olhar. O final do filme, na foto acima, o velho pai, agora definitivamente solitário, tem de aprender a descascar uma maça, é daquelas cenas na qual a tristeza encontrou a sua mais poética tradução. A vida é assim mesmo e aceitemos como ela é, parece nos dizer. Ozu é o mestre sereno que respeitou a vida e a natureza das coisas, então dediquemos a ele não apenas o todo nosso respeito, mas também o todo o nosso amor à beleza de seu cinema único e universal.

domingo, 7 de junho de 2009

RASTROS DE ÓDIO – 1956 – DIR. JOHN FORD


De todos os herdeiros da linguagem clássica criada por Griffith - e todos, de uma época do cinema, o são - John Ford é, pela excelência, o mais legítimo, acrescentando àquela gramática pioneira, a poesia (a beleza como retrata o velho oeste) e a prosa (a dimensão humana das pessoas simples). Clássico dos clássicos, John Ford jamais se considerou um autor; ficou famoso a sua apresentação, quando dizia simplesmente: “Meu nome é John Ford e faço westerns”.

Filmando longe dos estúdios, tinha o seu porto seguro, onde os mitos, com suas verdades e mentiras, com os vivos e os mortos, lhe eram presentes, somados à amplidão das pradarias, respirando a aventura e a liberdade: o Monument Valley, seu céu azul radiante e suas imensas e avermelhadas rochas brotando do chão. Nesta paisagem, John Ford realizou o mais belo e amargo de todos os westerns, “Rastros de Ódio”.

O filme narra a saga de Ethan Edwards (John Wayne), personagem solitário e taciturno, que teve o que lhe restou da família (a de seu irmão) dizimada pela tribo do Chefe indígena Scar, em busca da única sobrevivente, Debbie (Natalie Wood), raptada pelos índios e, como se verá, incorporada à tribo. É uma busca movido pelo ódio e pela vingança, especialmente pela morte de seu disfarçado amor por Martha, esposa de seu irmão e mãe de Debbie. A jornada dura seis longos anos, nas quais John Ford nos mostra, não sem chocar, o ódio que Ethan nutre pelos índios. É uma das polemicas do filme, porém bem menor que a do racismo explicito de Griffith em “O Nascimento de Uma Nação” em 1919. Mas não se pode acusar John Ford de racista; anos depois, ele faz “Crepúsculo de uma Raça”, libelo em favor dos povos indígenas dizimados pelos conquistadores brancos. O que move Ethan é a sede de vingança junto da qual todos os sentimentos envolvidos à ela, inclusive esse ódio. Por outro lado, não há qualquer exaltação aos brancos e às suas conquistas como em Griffith, sem esquecer que o próprio Ethan é um derrotado sulista; não é de nenhum processo civilizatório que trata o filme, mas de uma extrema amargura de Ethan a quem apenas a vingança faz algum sentido.


Não obstante a tragédia de Ethan (a interpretação de John Wayne figurará em qualquer antologia de qualquer gênero), John Ford principia, em sua filmografia, uma revisão dos mitos do oeste, a ponto de, nos posteriores “O Homem que Matou o Facínora”, e no próprio “Crepúsculo de Uma Raça” refletir que muitas das lendas não passaram de...lendas, e de mentiras que derramaram muito sangue, de índios e brancos. Mas John Ford sempre foi contrario a filmes de tese. O grande poeta e prosador do oeste encerra um ciclo de sua carreira,e o faz utilizando-se dos planos do inicio e final de “Rastros de Ódio”, uma porta que emoldura a chegada e a partida de Ethan e sua solidão ao vento. Dizem que Jean Luc Godard ia às lagrimas todas as vezes que assistia ao ultimo encontro entre Ethan e Debbie; desconfio que o bravo irlandês John Ford, ao filmar a cena, deva ter se afastado um pouco da sua equipe e vislumbrar a beleza do Monument Valley para não mostrar os seus olhos marejados.

domingo, 10 de maio de 2009

A VIDA CONTINUA – 1991 – Dir. Abbas Kiarostami



O iraniano Abbas Kiarostami é o maior cineasta em atividade do mundo, mas qualquer de suas obras, numa primeira visão, pode, ao mesmo tempo, causar tanto o encantamento pela rara beleza como o tédio pela  lentidão e do não acontecer, tudo na mesma medida. É de paradoxos a filmografia de Kiarostami: sob a aparente e quase óbvia simplicidade, sem qualquer radicalismo visual, há um processo sofisticadíssimo de captação do real, do jogo na qual verdade e ficção se permeiam e se confundem. Além da excepcional beleza estética, sonora e narrativa de seus filmes que se harmonizam com a natureza, há dois aspectos de respeito ao humano fundamentais em Kiarostami: no modo de filmar os atores, quase na sua totalidade amadores, e sua relação com o próprio espectador, já não mais um sujeito passivo diante da imposição de um diretor do que assistir, mas como um verdadeiro participante na jornada proposta em cada um de seus filmes.

“A Vida Continua” ou “A Vida e Nada Mais”, os dois títulos vinham juntos quando exibido no Brasil, faz parte de certa e não declarada trilogia com “Através das Oliveiras” e “Onde fica a Casa de Meu Amigo”. É preciso contar um pouco destes filmes e relacioná-los para entender o método Kiarostami de trabalhar com o real. “Onde fica a Casa de Meu Amigo” é a única história independente que narra a saga de lealdade de dois garotos amigos na aldeia iraniana de Koker. “A Vida Continua” conta a história do diretor de “Onde fica a Casa de Meu Amigo” e seu filho em busca das crianças atores deste filme na aldeia de Koker, atingida pelo terremoto em 1990 e saber se estão vivas. E “Através das Oliveiras”, narra incidentes de um amor entre atores na filmagem de “A Vida Continua” na qual o diretor e seu filho são atores secundários. Neste jogo de entrelaçamentos, “A Vida Continua” é o filme do meio, mas com autonomia ficcional e narrativa.

A busca do diretor e de seu filho pelos atores mirins é feito com um velho automóvel percorrendo a árida paisagem devastada pelo terremoto no Irã. Tudo apontará para o trágico. Mas não trilha por esse caminho, certamente mais fácil, Kiarostami. Ele prefere a vida. A reconstrução dos seus moradores a partir dos escombros, com o barulho intermitente de caminhões, britadeiras, marretadas, todos os sons e imagens se dirigem para os elementos vitais, como se a vida fruísse involuntariamente aos sentimentos que poderíamos impingir pelas milhares de mortes que sabemos presentes.

Pois este elemento vital respira em todos os instantes nos caminhos percorridos pelo diretor e seu filho. As narrativas de tomadas longas, as vezes com a câmera mais distante, como as nos inserir nas paisagens, apresentam esse fluxo de vida, não com uma profusão de imagens, mas com o tempo preciso da apreciação, o tempo do convite a viver com aquelas pessoas, junto delas. Em muitos momentos, pelo fato de ter sido filmado em locações, com iluminação natural e atores amadores, parecerá um documentário, mas de um tipo diverso, na qual participamos num processo invisível de envolvimento com a situação que de fato ocorreu, o terremoto. Este realismo, ou a nossa própria percepção do real, se dá em outro nível, como se nós próprios percorrêssemos naquele tempo, os mesmos caminhos, ainda que nos detenhamos por esta ou aquela história, pessoa ou lugar em particular.

Os caminhos de Kiarostami são, ao mesmo tempo complexos e simples como os próprios caminhos de nossas vidas. Filmando as pessoas e suas vozes, já não mais o vemos como moradores de qualquer aldeia devastada por um terremoto e não sentimos mais qualquer diferença entre nós e os iranianos trabalhando para retomar suas vidas: somos todos de uma mesma comunidade universal em busca da felicidade que nos une.

A modernidade em Kiarostami não permite fechar o filme (a nossa vida é fechada?) mas em abri-la em varias possibilidades e a nos convidar a complementá-las. Esta é a chave do filme, a nos permitir, espectadores, a preencher lacunas, a sermos co-realizadores, numa generosidade praticamente inexistente em qualquer das artes. E, sobretudo, a não nos perecer pelas tragédias inerentes à vida. Em uma cena tocante e inusitada para nós, o filho do diretor pede a este para permanecer uma tarde num acampamento de refugiados pois irá passar na televisão o jogo Brasil e Escócia na Copa de 1990. É a vida e nada mais.