domingo, 10 de maio de 2009

A VIDA CONTINUA – 1991 – Dir. Abbas Kiarostami



O iraniano Abbas Kiarostami é o maior cineasta em atividade do mundo, mas qualquer de suas obras, numa primeira visão, pode, ao mesmo tempo, causar tanto o encantamento pela rara beleza como o tédio pela  lentidão e do não acontecer, tudo na mesma medida. É de paradoxos a filmografia de Kiarostami: sob a aparente e quase óbvia simplicidade, sem qualquer radicalismo visual, há um processo sofisticadíssimo de captação do real, do jogo na qual verdade e ficção se permeiam e se confundem. Além da excepcional beleza estética, sonora e narrativa de seus filmes que se harmonizam com a natureza, há dois aspectos de respeito ao humano fundamentais em Kiarostami: no modo de filmar os atores, quase na sua totalidade amadores, e sua relação com o próprio espectador, já não mais um sujeito passivo diante da imposição de um diretor do que assistir, mas como um verdadeiro participante na jornada proposta em cada um de seus filmes.

“A Vida Continua” ou “A Vida e Nada Mais”, os dois títulos vinham juntos quando exibido no Brasil, faz parte de certa e não declarada trilogia com “Através das Oliveiras” e “Onde fica a Casa de Meu Amigo”. É preciso contar um pouco destes filmes e relacioná-los para entender o método Kiarostami de trabalhar com o real. “Onde fica a Casa de Meu Amigo” é a única história independente que narra a saga de lealdade de dois garotos amigos na aldeia iraniana de Koker. “A Vida Continua” conta a história do diretor de “Onde fica a Casa de Meu Amigo” e seu filho em busca das crianças atores deste filme na aldeia de Koker, atingida pelo terremoto em 1990 e saber se estão vivas. E “Através das Oliveiras”, narra incidentes de um amor entre atores na filmagem de “A Vida Continua” na qual o diretor e seu filho são atores secundários. Neste jogo de entrelaçamentos, “A Vida Continua” é o filme do meio, mas com autonomia ficcional e narrativa.

A busca do diretor e de seu filho pelos atores mirins é feito com um velho automóvel percorrendo a árida paisagem devastada pelo terremoto no Irã. Tudo apontará para o trágico. Mas não trilha por esse caminho, certamente mais fácil, Kiarostami. Ele prefere a vida. A reconstrução dos seus moradores a partir dos escombros, com o barulho intermitente de caminhões, britadeiras, marretadas, todos os sons e imagens se dirigem para os elementos vitais, como se a vida fruísse involuntariamente aos sentimentos que poderíamos impingir pelas milhares de mortes que sabemos presentes.

Pois este elemento vital respira em todos os instantes nos caminhos percorridos pelo diretor e seu filho. As narrativas de tomadas longas, as vezes com a câmera mais distante, como as nos inserir nas paisagens, apresentam esse fluxo de vida, não com uma profusão de imagens, mas com o tempo preciso da apreciação, o tempo do convite a viver com aquelas pessoas, junto delas. Em muitos momentos, pelo fato de ter sido filmado em locações, com iluminação natural e atores amadores, parecerá um documentário, mas de um tipo diverso, na qual participamos num processo invisível de envolvimento com a situação que de fato ocorreu, o terremoto. Este realismo, ou a nossa própria percepção do real, se dá em outro nível, como se nós próprios percorrêssemos naquele tempo, os mesmos caminhos, ainda que nos detenhamos por esta ou aquela história, pessoa ou lugar em particular.

Os caminhos de Kiarostami são, ao mesmo tempo complexos e simples como os próprios caminhos de nossas vidas. Filmando as pessoas e suas vozes, já não mais o vemos como moradores de qualquer aldeia devastada por um terremoto e não sentimos mais qualquer diferença entre nós e os iranianos trabalhando para retomar suas vidas: somos todos de uma mesma comunidade universal em busca da felicidade que nos une.

A modernidade em Kiarostami não permite fechar o filme (a nossa vida é fechada?) mas em abri-la em varias possibilidades e a nos convidar a complementá-las. Esta é a chave do filme, a nos permitir, espectadores, a preencher lacunas, a sermos co-realizadores, numa generosidade praticamente inexistente em qualquer das artes. E, sobretudo, a não nos perecer pelas tragédias inerentes à vida. Em uma cena tocante e inusitada para nós, o filho do diretor pede a este para permanecer uma tarde num acampamento de refugiados pois irá passar na televisão o jogo Brasil e Escócia na Copa de 1990. É a vida e nada mais.

CABRA MARCADO PARA MORRER – 1981 – Dir. Eduardo Coutinho


Coube a um documentário, feito com escassos recursos (dinheiro saindo do próprio bolso e a ajuda de amigos e fieis colaboradores), atingir um dos maiores momentos do cinema brasileiro, tão grande quanto às obras de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla. Eduardo Coutinho, com raízes no Cinema Novo, já era reconhecido por seu trabalho no Globo Repórter, mas “Cabra Marcado” representou uma jornada pessoal, uma aventura a ligar dois elos de sua própria obra e também a dois momentos da história do Brasil. Trata-se de uma obra fundamental para entender o cinema e o país.

“Cabra Marcado Para Morrer” começou a ser rodado em 1964 e contava a história de João Pedro Teixeira, líder camponês da cidade de Sape na Paraíba, assassinado por latifundiários em 1962. Era o chamado “docudrama” , ou seja, a representação ficcional de um fato verídico, no caso, a história das ligas camponesas e sua organização para melhores condições de vida e de trabalho. Para a sua produção, financiado pelo CPC da UNE, Eduardo Coutinho contou com os próprios camponeses para representar a si mesmos, incluindo a esposa de João Pedro, Dona Elisabeth Teixeira e seus filhos. Ocorreu que, em meio às filmagens, no dia 1º de abril de 1964, veio o golpe, e os militares não só proibiram a produção como confiscou o material e equipamentos e prenderam camponeses e técnicos. Eduardo Coutinho conseguiu escapar e salvou o incompleto material filmado. Durante 17 longos anos, nas quais, como afirma em entrevistas, aquela incompletude atingia o âmago de seu ser como um espinho fincado, Coutinho foi preparando a retomada de “Cabra Marcado para Morrer”; quando finalmente reuniu recursos suficientes, percebeu que não fazia mais sentido realizá-la como uma ficção, e decidiu filmá-lo como um reencontro com aquelas pessoas, algo para o qual o documentário era a forma ideal.

As imagens que seguem são uma serie de entrevistas com os camponeses, narrações off do próprio Coutinho e de Ferreira Gullar a explicar, de um lado, o próprio processo daquele reencontro e de outro o contexto histórico do primeiro “Cabra Marcado”, imagens dos jornais da época, se tudo se intercalando. O próprio filme é apresentado aos moradores de Sape, representativa de tudo o quanto o filme propõe. Há ainda um processo investigativo para descobrir o paradeiro e o que ocorrera naquele hiato de 17 anos, principalmente da esposa de João Pedro, Elisabeth, e seus oito filhos.

Todo processo de “Cabra Marcado para Morrer” é de uma complexidade como poucas no cinema, aqui e de fora, uma vez que trata da memória de um dado momento histórico e a sua multiplicidade de visões a partir de seus protagonistas. Como afirmou o Professor Ismail Xavier, além do passado e do presente, existem um outro elemento que a completa: a do tempo contemporâneo, ou seja, de nós espectadores, o hoje; além disso, como cinema verdade idealizado pelo francês Jean Rouch, o próprio realizador é participante ativo de sua obra, com todas a implicações resultantes, como se não fosse, de fato, sua, mas de todos aqueles camponeses.

No entanto, há mais. Quando o assistimos, e o compreendemos didaticamente aquela complexidade, vemos, antes, o mais simples: as pessoas com seus rostos, suas vozes e suas histórias. Estão dignificadas na medida em que “Cabra Marcado para Morrer” liga finalmente o passado com o presente, principalmente na figura de Elisabeth Teixeira que, por inusitado que pareça, se tornou uma das maiores figuras femininas da história de nosso cinema. “Cabra Marcado para Morrer” , sem o querer, se tornou uma verdadeira obra prima na qual vemos, diante de nossos olhos, sua própria gênese. Para além da riqueza de significados, e são muitas, nos completamos com as imagens do povo, suas histórias e suas vidas.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

LUZES DA CIDADE – 1931 – Dir. Charles Chaplin


O legado de Charles Chaplin, nascido miserável e tendo, de fato, quase morrido de fome na sua infância em Londres, é dos maiores do cinema, e certamente o personagem Carlitos é daqueles na qual a humanidade, em todos os seus aspectos, o sublime em meio às adversidades inerentes à vida, é colocada da forma mais bela e profunda. Fazendo nos rir e chorar, sua arte não esta na genialidade em conduzir emoções, mas antes de nos aproximar de uma essência que teimamos em esquecer, de nos lembrar que somos livres.

“Luzes da Cidade” é uma história clássica em sua simplicidade e não a estarei estragando um centímetro em resumi-la: o vagabundo é confundido como um milionário por uma pobre florista cega que vive num cortiço com sua mãe e passa a ajudá-la sem revelar sua verdadeira identidade; acontece que um milionário, este verdadeiro, totalmente embriagado, é salvo de sua tentativa de suicídio pelo mesmo vagabundo e lhe fica eternamente grato passando a considerá-lo como seu melhor amigo; no entanto, apenas o reconhece quando está bêbado pois, sóbrio, esquece a amizade e a gratidão e sempre o expulsa de sua mansão, situação que se repete ao longo da película; em dado momento, o vagabundo lê uma noticia de um médico que pode curar a cegueira da florista e passa a trabalhar ardorosamente em vários atividades (lixeiro, boxeador) para obter dinheiro suficiente para a operação, mas tudo resulta em retumbante fracasso; um dia, quando encontra seu amigo milionário, este, bêbado, o chama a uma grande festa em sua casa e, compadecido com a luta inglória de seu amigo vagabundo pela sua amiga (sua amada?) decide ajudar com o dinheiro; acontece que ocorre um assalto na mansão e, após ficar sóbrio, o milionário acusa o vagabundo de tê-lo assaltado e este, após uma inútil tentativa de explicar, foge, entrega o dinheiro à florista e posteriormente é preso, passando anos na prisão.

Se quase tudo já foi dito do personagem de Carlitos, destaco um aspecto presente em “Luzes da Cidade” e em todos os seus filmes: a liberdade. Não por acaso Chaplin escolheu a figura do vagabundo como o personagem em quase todos os seus filmes. Que figura exemplificaria melhor o seu não estar preso a nada, a falta de lar, de emprego, de vínculos familiares, essa saudável irresponsabilidade? Porém não ser responsável não significa não se comprometer e, ao longo de vários filmes, pelo fato justamente de ser absolutamente livre, é que o vagabundo Carlitos pode verdadeiramente assumir compromissos , e sempre com uma pessoa em situação ainda menos afortunada que a sua. São, portanto, duas as forças que movem Carlitos: a luta pela sobrevivência e o amor ao outro.

Pois, se para Carlitos, que não se submete a qualquer categoria do sagrado (a religião, o capitalismo) nada mais lhe é tão precioso quanto a liberdade, o único motivo que o faz abrir mão dela é para ajudar o próximo e, para tanto, não mede esforços, se submetendo a todas as formas de exploração e injustiças, aceitando mesmo o trabalho e a prisão (quase como sinônimos). Não o faz diferente em “Luzes da Cidade” quando, no final do filme, o mais belo de todos, de volta à liberdade e à pobreza, Carlitos “vê” a realização de seu sacrifício no olhos da florista. As luzes do filme, iluminando nossa própria humanidade, também nos instiga: o que fazemos com a nossa liberdade? Carlitos, a quem a vida e o mundo o tornaram o mais amado dos vagabundos, nos convida a sermos mais livres e solidários, é só aceitar.